terça-feira, 12 de agosto de 2014

O QUE EU FAÇO?

Arte de Francis Picabia

Depois que virei palpiteiro amoroso, sou vítima dos esbarrões e dos conselhos a toda hora.

Por detrás de uma gentileza, pode vir um desabafo e aquela pergunta constrangedora ao final:

– O que eu faço?

Estou temendo cumprimentar na rua. Saúdo com “tudo bem?”, e o outro tem a audácia de replicar que não, emenda o que o vem afligindo e chora em meus ombros. Sinto que meu terno é um lenço de papel gigante. Hoje me escondo no costume de acenar com a cabeça e economizar entusiasmo.

Não sou terapeuta, não sou conselheiro, sou um escritor que observa a vida com fome e curiosidade e captura as contradições com facilidade. E só. Não tenho nenhum poder sobrenatural.

Mas, até me explicar, o desabafo já começou. Na dor, as pessoas falam rápido (a alegria, por sua vez, não precisa de muitas palavras).

Recebi uma carona na última semana. Era tarde, chovia, fazia frio, esperava um táxi que não chegava numa rua deserta, uma simpática mulher encostou e perguntou aonde ia.

– Petrópolis!

Ela sorriu:

– Estou indo para lá, vem?

Entrei no veículo, já arrependido. Como explicaria para minha esposa que tomei carona com uma estranha? Preventivamente, liguei o GPS do meu celular na hipótese de ela ser uma psicopata.

Ela nem esperou que comentasse sobre o tempo pavoroso naquela noite em Porto Alegre, desandou a narrar suas desventuras, o status nervoso de seu relacionamento, detalhou conversas, especificou suas expectativas.

– Sou casada há oito anos com um possessivo. “Não sou ciumento, sou possessivo”, diz ele, crendo que é beeem melhor... Eu tenho de obedecê-lo, me adequar a suas vontades e ser companheira com ZERO de reciprocidade!

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de combustível.

– Visitar a minha família, frequentar a roda dos meus amigos, fazer os meus programas, nunca, sempre a vontade dele... Acabei me afastando de muitas pessoas queridas em função disso.

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de air bag.

– Perdi minha essência, pois eu o sinto exatamente como um CHEFE! Inclusive eu brinco que sou sua secretária de luxo, pois ele está sempre me solicitando coisas.

Foi quando o painel digital de seu carro passou a piscar: anomalia de poluição.

– Ele não gosta de meu senso de humor, acaba incomodado por eu ser extrovertida e expansiva, me poda o tempo inteiro, odeia chegar aos lugares e notar que eu conheço metade do mundo e ele não. A impressão é que ele precisa me diminuir para brilhar.

Ao descer, ela me encarou, ansiosa:

– O que eu faço?

Só tive tempo de responder:

– Troca de carro!





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 12/8/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17888

5 comentários:

Ragazza disse...

Não, você não merece ser assediado para responder perguntas sem resposta. Ou com resposta talvez, mas sim para ser analisado meu caro. Escrever é um dom, transmitir sensações e td o mais. Se te visse na rua te diria: Meus parabéns.

Samanta Hilbert disse...

Nossa, me identifiquei muito com esse post... Também não aguento esse monte de gente me perguntando coisas... O que eu faço???

.... brincadeirinha..... rssss....

Parabéns pelos textos, as carapuças servem até o queixo! rs...

Dayana disse...

Vontade de te abraçar em silêncio por dois minutos e te agradecer por concretizar pensamentos que, até então, eram apenas viagens despercebidas na minha cabeça <3

ana disse...

Vi a entrevista com seu pai. Como vocês são parecidos, inclusive no jeito de falar !

Mas em termos de personalidade parece o oposto um do outro.

obat herbal ambeien disse...

nice post and i like the update