terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O BAGAGEIRO E A MALA

Arte de Fortunato Depero

Homem sabe arrumar bagageiro, mas fracassa ao organizar sua mala.

O bagageiro do carro é sua mala.

Lembro as técnicas militares do meu pai quando passávamos um mês no litoral gaúcho.

Naquele tempo, carregávamos a casa para o mar, não íamos somente para o mar.

Tínhamos que levar tevê, ventilador, cadeiras, isopor, panelas, afora as bagagens do casal e dos quatro filhos.

E mais brinquedos. E mais bicicletas. E pranchas. E patins.

A mãe sempre se metia na frente e tentava acomodar as quinquilharias no Corcel II.

Na metade do processo, ela desistia e gritava com todo mundo:

– Vamos, pessoal, optar e selecionar o que cada um realmente vai usar.

Nessa hora, vinha o pai, com seu boné de poeta Neruda, analisava o tamanho da encrenca, um contêiner de alças, e pacificava:

– Deixa que resolvo, não precisa tirar nada daqui.

Ele iniciava um longo processo de quebra-cabeça, de encaixe de conteúdo pela forma e pelo peso do objeto, empregando desvãos e esconderijos inimagináveis debaixo dos bancos.

Virava um samurai, com movimentos lentos e seguros, numa coreografia que se assemelhava à saudação ao sol da ioga. Durante 30 minutos, em insana caixa registradora, retirava coisas e depositava de novo.

E aquilo me impressionava. Só ele conseguia lacrar o porta-malas, parecia que seria impossível!, e ainda garantir uma abertura ao retrovisor.

Quando batia a porta e estalava o clique, todo mundo aplaudia. Era uma cena mais festejada do que churrasco de domingo.

Já o pai com sua mala era um fiasco.

Desleixado, confuso, sem ordem nenhuma na colocação das roupas ou na importância dos itens.

Botava embalagens frágeis no forro, perfeito para quebrarem, dobrava as calças como cobertor e esticava as camisas como redes de varanda.

E ficava irritado e socava o couro e urrava de insatisfação.

A mãe precisava dar um jeito, senão ele jogaria tudo no chão.

Com a arte mínima das unhas, a paciência de leque das mãos, a figura materna reorganizava as peças, criava canudos com as roupas, explorava os bolsões com domínio e equilíbrio.

No final, a mala paterna que antes transbordava agora chamava outros convidados do armário e da estante. E o pai podia, inclusive, ampliar seu repertório de livros e sandálias.

Minha infância veio à tona quando vi minha mulher arrumando seus pertences para as férias em Búzios (RJ).

Ela não sentava na mala como eu, não ficava de pé nela como eu, não ameaçava a integridade dos produtos caros de cabelos e pele com golpes de caratê, não produzia curvas de autódromo no zíper como eu.

Simplesmente conversava com a mala:

– Fecha, por favor, a gente merece ser feliz.

E a mala obedecia.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 03/02/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18062

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